Wednesday, December 12, 2007

depillow-talk






Temos tido vidas dentro das vidas: umas para cada uma de nós a sós, outras para as duas ao mesmo tempo (ai, a reciprocidadezinha!) e finalmente a vida que vai por aí, deveres, amantes, o que nos vem bater à porta e as maçadas do destino. Sobra pouco para a arte e a vida comezinha? Não! Faz tudo parte do mesmo desforço... Da nossa desnaturada natureza. Há os coices, pois há! E a candura de tudo ir sendo, mais ao menos, um amável e admirável falhanço.


Quando nos inserimos (como uma rosquinha) nesse cú-mundo da arte temos a sensação de que os confrontos dialéticos e essas tretas todas já há muito implodiram... pode ser que não, mas é uma sensação que agora parece pertinente - estamos instaladas inquietamente num conforto cínico e não sabemos onde é que começa a arte e o desconhecido e onde é que começa o tricô. Ainda por cima nem sabemos tricotar!


Demos largas à atracção pelas armas de fogo falsas - sentimos que as nossas mamocas, cada vez mais catitamente plásticas, são o equivalente prometaico das pistolas que os míudos compram nas lojas de chineses.


Um desfile de velhas e dignas prostitutas, com as suas modas bizarras - uma ressonância maligna e «querida» que não encontramos nos modelos profissionais.


Não gostamos que se use a condição feminina para a vulgarizar - por isso cá estamos militantemente para as excepções rituais, mesmo muito depois de perder, ou não perder, a virgindade.


Somos irónicas respectivamente, mas desprezamos irónicamente as atitudes masturbadoras de auto-ironia.








O nosso arzinho de arte é sobre aquilo que comunicamos depois da comunicação - a partilha ambiciosa de algo que não rasteja nem nas conversas (e trocadilhos adjacentes), nem nos objectos, nem nas intenções: uma certa vontade de continuar a tagarelar com interlocutores imaginários silênciosamente.

Sunday, October 21, 2007

Yolanda


A pitonisa está deitada sobre Yolanda. Pasta nas traduções. Abotina-se. Segreda-se. «Sou devorada pelos precepícios de uma história que está sempre a precepitar-se para coisas infâmes. Falta-me aquela dureza dos clérigos quando esgrimem o ad secula seculoram. As coisas sacodem-se de mim, ou em mim. Os destinos alheios parecem primordais porque vêm da terra, com máscaras argilosas. Andam à procura de quem lhes dê alma, ou os faça solitáriamente pastáveis.»


Yolanda recebe o corpo da pitonisa que tem aquele calor frio de serpente. É uma carne com temperatura de climas mais a norte, mas é esguia e envolvente.


Yolanda cresceu em falanstérios. Foi educada na ansia revolucionária. Desconfiou sempre dos que se fazem passar por inocentes. Sabe que amar é ser vulnerável a coisas cornudas. Amou uma líder de um kibutz trinta anos mais velha do que ela e que a trocou por uma rapariga dez anos mais nova. Mas Yolanda gostou dos ventos palestinos, das laranjas espremidas, das noites nas praias comendo gelados de corantes e ouvindo canções da moda. Trabalhou numa tabacaria num centro comercial e viu pessoas agitadas com coisas santas e cheias de vontade explodir.


Yolanda fez-se artista porque tinha vontade. Umas pessoas dizem que é preciso vocação. O que é a vocação? Habilidade? Impaciência? Um bichinho? Uma gravidez poética? No seu caso tinha sido inquietação e percebera que não era difícil dar o tal passo em frente. As cidades convidam a esse papel furioso e supostamente nobre, e o salto é pequeno. É certo que há, para já, imensas tradições que piscam os olhos e querem arrastar-nos para as redes obscuras do passado. Mas Yolanda percebeu que devia começar por ser unilateralmente moderna. Ela via-se como uma «pastora da actualidade», porque o passado é uma coisa que demora o resto da vida a encontrar os fios que já estão estampados nas supostas incongruências do presente.


Uma artista deve ser multipla, disseminada, infernal, corporal, se calhar feminista. Ela tinha estado em Israel, na Palestina, no Egipto. Boiara no mar morto. Subira ao monte Sinai. Banhara-se no rio Jordão. Sentira o odor a eternidade degradada nos bicos pouco bicudos ao perto das pirâmides. Sentara-se em sítios onde o sol é forte e a sombra é nítida. Percebera o papel murmurante das sombras e dos duplos, e das instancias demoniacas das imagens pintadas. E de como tudo isso se combinava com uma guerra onde o mundo teimava em desabroxar com muitos pretextos politicos a passar por religiosos.


Yolanda era a negatividade da negatividade. Uma sombra a projectar-se para pessoa. Revia-se em deuses e deusas com cornos. Como artista sabia que tudo neste mundo é material e mediático, mesmo a mais desgastada solidão. Mas também sabia que a piedade é irmã da orgia, e que é pouca a diferença entre a monja e a ménade. Ela começou por fazer instalações no deserto, com urzes, a ver se estas registavam algum indicio falante de YHVH. Não se percebeu se registavam, ou se as urzes já eram a voz de YHVH sempre que o vento por elas passava, tagarelando num dialecto demasiado divino para ser traduzido. YHVH diz que é mulher, e que a divertem as lutas inuteis dos homens.


Yolanda passeou-se pela europa e deitou-se com muita gente. As pessoas com quem se deitava na europa eram complicadas e estavam mais atentas a uma tensão orbitante do que aos corpos. Sobre os europeus pesa a culpa perpétua de já não poderem ser ferozes, expansionistas, audazes, dominadores, cruéis. Na sua posição de deitada apercebeu-se que a vocação da arte nascia (òbviamente!) nas correntes passionais, e que essa constatação era mais um clichê a que não se podia escapar.


As tradições vão-nos desgastando e corrompendo até entrarmos nelas. A certa altura temos orgulho em fazer parte de mais um cavernoso passado e lavamos os dentes até estes reluzirem num cantinho se possível bem iluminado da história. Esquecemos que um hálito corrupto atravessa as obras e que a museologia e outros afãs legitimadores são exímios em dissimulá-lo.


Yolanda encontrava-se nesse estado horizontal. A pitonisa via-lhe o amor a querer abocanhar as coisas como um bicho apocaliptico com olhos espalhados pelo corpo. Então beijava-lhe a fertilidade vindora e massajava-lhe a lucidez e punha-lhe os dedos nos pontos onde a loucura irradiava um pouco. «Nada nos devora tanto como nós próprios. Há uma beleza cumplice da intiligência e uma outra beleza que conspira assassinamente contra esta». Yolanda acolhia essa guerra bicéfala e não se deixava dilacerar. Ela olhava os pés da pitonia com sofreguidão. Pés negros num corpo leitoso. Pés de fauna abeirando-se de um bosque.


E havia essas pinturas do Vermeer onde a cor é densa e subtil e onde as mulheres parecem levitar sem oráculos. A pitonisa perferia Rubens, o das carnes, da abundância, de onde os impetos do barroco partem para todas as caças.


Foi então a pitonisa acometida de estremecimentos. Yolanda estava quieta. A pitonisa começou a estrabuchar de embriagada, a soltar frases, a rimar destinos, a sentir por dentro do seu corpo as cordas muito esticadas do deus da lira. A pitonisa caíu ainda mais branca, mais fria e ficou-se pelo chão tão impávida. Morta. Uma amiga judia, brasileira, versada em Orixás avisara-a à muito tempo de que o sabor do seu corpo podia ser mortal. Yolanda não se precavera porque desconfiava das chantagens desse tipo de gente.


A inocencia que tanto desprezara tinha-lhe aterrado nesta cena.


Yolanda continuou quieta e imensamente deitada.

Estalo (felix culpa!)


Houvera de enlouquecer dentro do estilo. O «estilo é a minha força» dizia E.B.. Não senhor! O estilo é uma farsa e um disfarse. Costumo acordar já calejada com muito calão a ascender e o estilo dos outros a apertar em volta como uma corda onde já não nos queremos enforcar. Percebemos depressa, quando olhamos os olhos de uma grávida, que a morte está muito mais inclinada sobre elas, e que a húmidade (e a humanidade) é assustadora. E a criança que está vir já começou a assassinar a mãe. Devagarinho.


Arrumamos e limpamos o pó. As sombras vão-se no desarrumo do quarto ou então na impecável e maníaca ordem sob a qual há um orgulho de organizadora.


Desaprovo a minha violência com os seus amaneiramentos e a soberba intelectual de quem se julga dona de uma incomensorável autoria de si mesma. Não descuido assim tanto das minhas maneiras e de certa forma incomodam-me os exemplos de puro aleatório, a famigerada não-autoria e outras canalhices que tanto se propagam. Mas não me sei reduzir a fluxos concentrados de uma forma voluntária. É certo que me repito, como a horrível canção do «apitó comboio». E então tenho uma vontade tremenda de mudar de maneiras, de começar a entender-me a partir de outras palavras periféricas mas idealmente fortes. Não sei se estão a seguir a meada (a miada)?... São os turbilhões verbais que me vêm caçar. Eu só me sento disposta a algum acontecimento ou transe.


E depois não fumo (nunca fumei), nem cigarros, nem drogas, nem esquento as minhas angústias com vinhos ou bebidas licorosas. Estou só ali um pouco ao sol, como quando se bordava qualquer coisa. Mas já não se borda com as mãos que bordaram a Senhora do Licorne - «A mon seul Désir!», Lembrai-vos?


Vieram bater-me à porta. Ou telefonaram-me. Era um inquérito.

- A senhora quer mudar de estilo?

Respondi que mudava de estilo sempre que me apetecia, e que tinha os meus, e que gostava deles, assim, mesmo que meio desconchavados e que não queria outros, mesmo que fossem fantásticos ou novinhos em folha.

- Mas é uma promoção, são vários estilos num só pacote!

Irritou-me o rapaz, não pela promoção, mas porque não me apetecia regatear e também não queria dar um ar de contestatária adolescente supostamente enjoada com o excesso de promoções que nos arruídam as lides e nos tocam à campaínha quando estamos concentradas em raciocínios mais ou menos a puxar para o sublime.

- Também temos estilos para sado-masoquistas, prostitutas, emigrantes, gays, lésbicas e até pessoas normais.

Desliguei. Ou bati com a porta. Ou fui malcriada. Começa a ser um dos poucos modos de sobrevivência, isso da má criação.


Quis voltar ao meu cantinho no mundo, a uma assolarada transe, ao fluído rio de imagens e palavras, às minhas orquideias fixas, ou a outros pastiches florais, sem ares de ikebana ou sem fazer dos meus arrumos uma cabana ikea.


Sabia há muito tempo que o estilo vem por um lado da boa ou má impressão que nos causam certas pessoas, que tanto podem ser mortos gloriosos, com direito a várias colunas em respeitáveis enciclopédias, como de amigos barulhentos ou discretos que nos pomos a admirar em pé de igualdade, ou com uma voraz admiração - aquela de quem lhes quer comer o estilo crocodiletantemente. Por outro lado o estilo vem da mais elementar organização do mundo. Quando gostamos de coisas mais coloridas, ou escuras. Quando preferimos as rectas aos redondos, e por aí adiante - é só refinar as preferências em arremedo de estilista.


Com os anos, o desrespeito pelos mestres vem-se aguçando. Não consigo ouvir música, ler livro, contemplar pintura, ver filme, ou qualquer coisa parecida, sem me pôr a ageitar, a engendrar planos, malévolos ou não, a canibalizar um pouco. Não consigo ficar quieta nem meditativa. Se calhar o socego fazia-me bem. Ou o tricô.


Pastiches? Paródias? Quizás!... Podem ser modos de lamber botas, de venerar mortos e mortos-vivos. Pode até ser uma espécie de religião. Mas quando lemos Shakespeare, compreendemos que o compincha apenas adaptava histórias e se libertava caricaturalmente ao entrar pasticheiramente na lógica interna de determinados caracteres. A comichão gritante da retórica gestual que se apropria como um espectro do actor é parte dos atributos canibais e teatrais do Absoluto. Ou de Deus, se Deus se adaptar barbudamente ao papel de regente, administrador ou empresário dessa coisa.


É certo que à força de repetirmos frases fortes estas cansam. Parece que estamos a despedirmo-nos delas mas que nunca mais vão embora. Procuramos redimirmo-nos desse assombro com a chacota, ou a desculpa, ou por um artificial jogo de apego/desapego ao que nos atraí para coisas fortes ou brejeiras. Somos muitíssimo complicadas e omnívoras e gostamos de o ser ao contrário de tanta gente simples traumatizada com a sua simplicidade.


Mas depois sucede o pior. É aquela fase em que nos admiramos um pouco, em que temos nostalgias dos velhos pastiches, das sedutoras paródicas. Então damos conosco a auto-canibalizar-nos sem sequer sermos autofágicas, porque o que estamos a devorar já não é bem o nós mesmas. Pastiche de pastiche. Paródia de paródia. E a puxar os galões ao recuerdo, mas em acelerada produtividade.


Outras vezes o estilo é um combate com o passado - elisão, no caso de aspirarmos ao classicismo, ao criterioso gosto de quem faz edições e distingue com censor rigor o melhor no meio da prolixidade; ou achincalhamento, no não querer dar a ver as boas vontades, a inocência patética e poética de quem andava à procura de bem cavalgar numa pedinte arte poética.


E também há o mito, com muitos cornos, da louca inocência das crianças, quando as crianças são apenas pobres, intensas e maravilhadas, no seu vocabulário e organização, máquina pouco ginasticada que por vezes surpreendem com belíssimas metáforas. As crianças gritam, mas não entram na eternidade. E sobretudo não enlouquecem quando passam para essa chinfrineira estúpida que é a adolescência, com a pele borbulhosa e a sexualidade sempre embaraçada e a dar ares violentos de querer arvorar uma beleza (ou feieza) que pode conquistar definitivamente o mundo. Mas para quê?...


Depois chega, dizem alguns, aquela idade desiludida de quem já somou estalos. Pode-se ter estilo («um estilo ofendido»), ou deixar de ter estilo. Ambas as hipóteses são negras, e eu, desconsoladamente, ainda não cheguei lá. Vejo alguns adiantados a desembaraçarem-se de tudo o que acumularam e a prepararem-se despojadamente para a morte. Despedem-se do saber e da autoria. Tornam-se mais lentos. Deixam de comunicar e lembram-se dos amigos, sobretudo dos que já cá não estão, porque os outros são uns chatos, e mais chatos e incómodos os jovens e aduladores. Acaba por ser outro estilo, de parágrafos menos enredados, provávelmente com menos virgulas. Um estilo que não se importa com ser estupido, ou desmodado e que não consola - acontece. E nalguns «acontece» com um vigor que supera o maravilhamento das crianças. É uma inocência ao contrário. Tantas culpas felizes!

Tuesday, October 16, 2007

obras de Rosa Herberta Vasconcellos Davida (exemplos)


a obra da nossa amiguinha divide-se actualmente em dois volumes, o poema-cantina e a restaurante prosa


no primeiro caso temos atribulados titulos como:


Um Lagar em Vista

A mulher na bica

Afectos cortantes

A laca ilírica

Animação vocacional

Cabra

A porca, a lixa, as ovas

A devoradora diurna (di-versões)


no segundo


A aposentação dos restos

Pássaras que voltam

Passerelle e fado


Do índice de um livro como A Aposentação dos Restos temos titulos como dos quais daremos publicação



  1. Estalo

  2. Yolanda

  3. Só Nós

  4. Politicas

  5. A ingrata

  6. As concubinas que vão para Antioquia

  7. Largar, lograr

  8. Com Ela canto

  9. Escadeados e formas físicas

  10. Danças de pulos

  11. A cobrança

  12. Aquilo que doi na vida

  13. Como se vem em Acapulco

  14. Trema

  15. Gatas, Aviadoras

  16. Equitação

  17. A enésima


Sunday, October 07, 2007

A ALIVIANTE LETRA



Pobres homens que nos invejam os verdes figos, e nos espreitam com candidata aleivosia pelas grades da sua velhaca apetência.

Que nos refresque e revigore em sua diurna sageza, e nos desfaça das mezquinhanças e nos reluza aos olhos daquelas que se desesperam com o oculto nas suas penhas e ladeiras.

Eis que se passou o inverno; e estou mais humana e ferverosa e perfumada e a pele ainda mais suave, ó filhas.

A macieira dá-nos a sabedoria que não abranda.

A moda é a pornografa que transmuda o excesso divino da natureza em sublimes paramentos e silvantes pensamentos.

É não é o lírio maléfico acenando aleivosamente nos campos, para que na sua contemplação nos façamos mais interiormente ardentes e exteriormente ousadas?

Apascenta o teu rebanho de carícias no banquete deleitoso do meu corpo, que tem erva boa e cheirosa e te responderá como excelso esposo.

São os bosques que buscam com sua arregalada e bem tangida harmonia a voz varoa de minha amada.

Desejo resplandecer como ouro. Mas não desejo ser ouro, nem de metalurgias solares. Pois sou como a lua que aparece e desaparece, se mingua e engrandece, se desespera e se alarga.

Pomba minha, que debicas as fendas de meus infernos.

Levou-me a moradas do mal como a uma fremosura, mas como sou sómente uma cerva que serve os matéricos deuses preferi correr para campos mais abertos e não me fechar mais em casas.

Os figos de certas amantes são estercosos pombais a que não irei jamais.

Flor gamo, que me faz chorar de perdurável desejo, flor que se desassenta e corre de encontro a fermosuras maiores.

Dizem que a natureza é confesso esterco, mas quem não escuta as harmonias que se desprendem dos arvoredos é porque não se livra das enegrecentes roupas que obstroem a alma, que se quer ainda mais corpórea e desnuda, quer no espírito, quer na alíviante letra.

Friday, October 05, 2007

AS VINHAS DA HORA





Às senhoras muito presentes, para usar comigo em meu paladar.

Ela levou-me às suas vinhas e eu abri-lhe o meu lagar.

Ela vem saltando sobre os montes, pulando como uma donzela a fazer-se cabrita, e por onde passa deixa o seu aroma, como uma chuva de flechas amorosas.

Levanta-te, meu amor, formosa ninfa minha, monstra risonha – os deuses despem-se para te ver, e os teus passos fazem o mundo mais amável.

Coroas os aspectos do que te envolve e os olhos daqueles que se gastam em gostanças, e despachas a mezquinhês e há vides em flor e as gazelas e as cervas do campo esticam-se no teatro absoluto da natura.

A minha amada é a minha amada por entre os braços dos bosques que a apertam e quase estrangulam embora seja uma flor abraçável só em delicadeza.

Conjuro-vos, ó filhas especiosas, tal é minha amada por entre as ninfas que conduzem os homens a desesperantes ravinas.

Errom como zebras feridas pelos becos e cais da moda.

Sabes por certo que aí é o bosque, e aí desaperta-se o meu amor, e até da rola se ouvem os gemidos suaves do acasalamento, e sentimos que esta é a nossa terra, onde as forças se retemperam no se desperdiçarem.

Aparecem as flores fendendo a sombra, e debaixo dela me assento mui corpórea e te aguardo com olhos de veada.

Leva-me de casa aos indómitos banquetes, mesmo que nestes se digam ausentes as iguarias, leva-me porque me banqueteie de ir só contigo.

Possa a natureza ajudar os frutos a adoçarem-se em meu paladar. E és suave quande se te acercam as loiças, e os talheres te roçam os lábios e eu me gostaria de ser a sopa que tu provas sem hesitações.

A minha amada é minha, e vem-se.

Erro pela mundanal ordem das excepções.

Pecados verdes, mundo de pelos, estábulo de deuses.


Pomba minha que com as mãos me vestes de um pudor que superlativamente se desfaz.

E debaixo dela me assento, ante olhos velozes e sob os ardentes montes do meu amor.

Formosa minha, vem, faze-te semelhante às cervas do campo desenrolando-te na cama dos arbustos e ainda mais selvagem sobre a minha floresta.

Não acordes com mãos secas. Humedece-me e a aparelha e apruma o teu instrumento afinando-me para as tuas instruções silenciosas.

CESÁRIA, A CORSÁRIA




Reluz, viscosamente, o rio. Hotéis contemplam os nativos e recontam a glória graças às mais femininas potências & também contemplam as fremusuras das outras namoradas. Vão como nenhumas, bem proporcionadas, pelos tapetes mundanos das sábias carnes!



Daqui por favor profano aperfeiçoei afeiçoadamente a cúspide da gloria e com estas deleitações (porque eu o entendo e o confesso da minha mui finita misericórdia) não deixo as coisas desanimarem com os trabalhos da carne para que me nasci. Todos os males me ajudam a dar graças aos assenhoramentos do corpo. Todo siso também. Ca os nossos passos, que aparelham o senhor corpo (ou a senhora carne) e aaqueles outros, também estultecem, no tanto se ousarem e usarem.

Entendo e confesso que o ânimo deles toma aos homens o poder, o que é motivo de motivos de não desanimarem com as ganas floridas da natureza humana, que esta ajuda ao extase. Que estes nom som feitos com deleitações sem proveito e assai parecemos dignos e mais dignos e merecedores de emoções retumbantes que podem devir nas florestas fluídas das naturas.

Porque não há nenhumas reticências que refreiem as caças amorosas, nem casas sonoras feitas com mãos alheias, e delas as forças e o ânimo e a mezquindade reverbam ante os olhos da moda e o Verbo aparentado do que se encarna.

Sabe por certo a sabor de favor amoroso, e por outro lado ao daqueles que gostarom da dulçura dos caules vigorosos, com o tinido de louças ajudando a furores musicalmente profanos.

Caímos imundas num estilo cuja híbridez nos desafora!

Daqui vamos por um ir com os que gostarom a dulçura dos bens riancheiros, motéis da moda onde podemos com que quiseramos dormir anos inteiros.

Nossos paaços, resplandecentes como ouro, e feitos com os espiritos exuberantes, coroam em esta falsa gloria, em que nos leixamos estendidos com a pele a seduzir a inclemente luz solar.

E com trabalhos ainda que duvidosos da vida vamo-nos nas andanças neste mundo e pensamos que avemos talheres para petiscar a glória.



Flamejam e reluzem as viscosas fremusuras das moradas da carne.

Os deuses tremem per aaqueles que os amam. E é por isso que saam grandes.



Em caminhada nos amam. E, assi com suas blandezas e dulçuras grandes e lúbrica misericórdia. Apesar de todos os vícios que sacodem a vida.







Semelham-se a gaiolas, ao esterco, aos olhos daqueles que nesta vida agitam as canseiras. Fazem-nos creer que sejamos sarcásticos sandeus, bem assi e muito asnos e alquímicos como ouro, e as nossas vestiduras simbólicas, de gregos vermelhos leões.

Deuses embriagantes podeis usar comigo das louças e dos talheres com fúria devoradora.



Flamejam e reluzem como ouro as nossas vestiduras, que andamos neste mundo e pensamos nele e nascemos novamente para todos os males embora não no possa a natureza fedorenta. E mais divina parece a dulçura que grande empequenece.



Vão em tremores os deuses e aaqueles que os amam.



Apesar deles me nasceram todos os males com estas aproveitáveis deleitações, como todolos seres dos arredores para uma glória inda mais intensa.

Não desanimem os que sobrepojam todo siso nem os que molham seu aparelho nos rios vinhosos do riso.

Ca aqueles que contemplam as fremusuras me ajudem a dar graças aos vaidopsos prados, aos chinfrinosos tinidos de louças e e às vestiduras feitas com as musas das modas.

Veste as mais fulminantes vestiduras, nobres e fremosas, mais excessivas que as deleitações sem proveito. Veste-as como um poder escorreito de ganas descritivas!

Com estas carnes apuradas e saltitantes parecemos viscosas, mas temos o coraçom puro e vazio e brilhante.

O rio apressa as obreiras, o visco socega os ociosos.

Como estes pobres omëes perecem muito mais que nós, embora vagarosamente verdes no seu sexo badalante!

Pois andamos perduravees com enganos e com os omëes que se pulam no criancismo: é coisa que amadurece como um escarnho azul nas nossas sentenças destemperadas.

Aqueles que contemplam as fremusuras fazem-se fremosos como as modas mais extremadas da natura.



Camas afáveis por favor divino, e por outro esse favor vindo da terra que te contempla como fremusuras habitável, como moda tangível e mensageira, e silva de choros e de tristezas vestidas e de alegrias desnudas. Causas nobres e fremosas? Ou mais fedorentas que lagrimas e mais perversas que choros, e mais feas que ceo tempestuoso? Que nom som feitas com mais do que nós, que andamos neste mundo a dar graças aos deuses de alto brilho, mas participamos na sua comédia comedida e lhes oferecemos em sacrificio o espetáculo da plenitude por muito que pareçam as coisas seeram conrompidas.

O sabor sábio do desfavor.



Caminha, cisma e olha. E assim correrá muito bem. As congratulações finais. A mulher que já não sua na brus­quidão de se apossar dos utensilios domésticos mas que se deita na imensidão do presente.

Algo lhes enformava as vidas & a gola do sobretudo e as não vidas num sem sobres­salto, num sobretudo alto: sem a afabilidade gelada dos canos no inverno desliza pelo interior algo escorreito e inquietante e dizem que é seguro e sereno. Não lhe posso tomar o peito a peito. Não lhe posso pôr os cornos em redor.

Enfias a cara na água como se lhe quisesses pertencer e mergulhas com ela a mão. Cada um e o tudo num sem sobres­salto: sem afabilidade há passagens de mão a mão. De carácter a carácter.

Cada espelho sem destemperos nos ama.

Sem favor, apaixonada, em todos passos que não se ouvem, ela chega como uma dama inusitada e branca. Não ama a convivialidade e convida à delação. De madru­gada torna-se mais àspera e esguia.

Estava uma noite quente e havia um bafo a acompanhar-lhe o ar sem aragem. Na alma, um mínimo limpava os excessos e os restos. Os outros impacientavam-na, e ela se ria, lembrando-se da mulher que saíra da mais terrena terra. Como é ainda afivelada a teorias antigas! O seu sangue sobe aos convés das almas.



Sabes o que fazer? Reconhece, nas vibrissas, os momentos peludos que têm asas. Queima os cadernos de encargos. Reduz-te exactamente.

Uma carreira temível, estimavel, informada a medos.

E ele, onde chegara, chegara sem chuva. Levantou-se para os que ouviam. Não há vivalma, ouve-se menos através daquela gente. Para aparar a noite como uma sebe estrelada.

Escolhidas pelo que têm, não pelo que o espelho da emanação dá a espelhar.

O espelho enche a concha a medo, arredia-se à convivialidade e não dá ouvidos.

Não há amigos desfavorecidos pelos anos, só amigas desvirgindadas pelo ânus.

Da terra, como sumptuários já arrumados mais alto em lugares públicos, passeando, fixa a cara.

Um rubor de pedra sobe às espáduas. Olha-se, vê-se. Aquela gente a impavidar-se numa vidência àspera. Ao seu sinal os bafos acompanham-lhe a serenidade do olhar. Na boca arremeda-o um esgar, como uma flor vibrátil dessa espécie negra, dessa variante obscura.

O homem-esgar tenta reaver a lassidão da pele num sem sobres­salto.

Sem afabilidade sente a testa de ferro: à disposição, como fáceis folhas cadentes.

Assim que pensa, pondera, pendura, convida a acompanharem-lhe a cabeça.

Passa a limpo notas e rabiscos, como se o dia estivesse acabado. Próxima desatenção: as guias finas brilham aus­cultando o sereno aspecto que lhe convem.



Punhos aos pulsos. Punhetas às pulsões. O arrepio das vidas num sem sobres­salto: mutismo.

A noite exactamente nocturna, sem a farsa burguesa da luz elétrica. Uma carreira temível, esco­lhida, satisfeita consigo, conivente com ela até à medula ia-se numa despedida pouco amorosa.

Conseguir, era resultar nela o que vibra, ferver o frio e o cauto numa alquimia carnavalesca. Igual sempre que for dessa espécie, dessa variante. Era a brus­quidão que lhe enformava a soltura.

A avaliação demitia os aspectos, consigo, a sós, em conivencia com o afecto coarctado. Temido e solto. Não fez som, mas sobres­salto: sem afabilidade e sem destemperos. Sem gente pastável para seguir de cada um o tudo e o nunca que quisera ter. Objec­tos que afivelavam presenças.

O sangue sobe ao estímulo, colocando as fei­ções pelo seu registo. Aprendera a ser solta. A avaliação era um bem naquele rosto que estímulava o frio. Rebuçava em anos. Da terra, como o lajedo do grande átrio aberto, dos punhos aos pulsos, so sexo à lingua.

O arrepio tinham-se alevantado, com apetrechos sumptuários e rabiscos, com o timbre sem chuva.

Levantou a gola do sobretudo e de tudo o que afagava o seu registo. Aguentou-se afugentando sentidos únivocos.

Aprendera, no risco, e não dera fraqueza.

Quando se apropria sem noticiar-se, a noite reverbera-se sem chegar a porquês. Amargam-se as variantes mais amáveis. Os agradecidos da sua brus­quidão, que lhes enformava o que fazer multiplicam-se para si.

Reconheceu, tinha vida própria sem noticiar-se, de águas frias e tintas fluídas. Passou à próxima intriga, aos vapores da cobiça e aos pós do cinzel. Nada mudou, não consumira ninguém num fogo azedo de azoto. Há muito de afazeres, com ou sem destemperos. Sem favor, nem desfavor. Porquê, o afecto, todo ao longe?



A reunião correra bem. Mas dava-se um ar sem aragem. Aprendera, há muito, com o lúgubre. Deixara os deveres oficinais para seguir as caminhadas da noite. A bela afeição a uma torre que sai do solo. Como a noite estava de uma grande frialdade (ao menos para aquela gente) ela sentia-se um vulcão oracular.

É assim que ela pensa, pondera, vê, aguardando a esferográfica sibilina posta a dançar uma coreografia muluscolar.

Os afectos invectivam a novos finais. A repugnância senhoreia.

Diante do passagens de mão arrastava partes da cara. Cada invectiva era um resolver contra alguém. E soer­guia-se na sarjeta próxima. Segurando a serenidade.



Em momentos de risco, não dava fraqueza. Desejo de alargar a alma, no mínimo. Uma guinada na memória afastava-a e deslizava-a pelo interior dos punhos da intriga.

A reunião da cobiça e da intriga apaixonada em exímios passos não se basta a acompanhar-lhe a cabeça.



Os ombros, arremeda-os com esses olhos de balneários, de sanitários de liceu e pele enxuta. Penteia-se, acha-se bem naquele rosto anatómicamente de Gray ao invés. Lição de impassibilidade e mutismo.



Como se ria? Lembrando-se onde guar­dara a esferográfica. Lei da selva? Exactamente.

O trabalho não era conseguir, era resultar, e comungar com uma donzela puxando-lhe as rédeas soltas. Reti­rava, sem desejo as ofegações do peito e afastava-se do espelho.

Da emanação dos balneários, dos sanitários sem afabilidade e sem destemperos viera-lhe a canibalidade. Sem favor, sem chuva. Levantou a gola das intrigas alheias e sentiu uma outra coleira.

Um rubor de pedra subiu-nos à paixão. Ao menos para aquela gente um sermão é um sermão. A sua marca fazia enormes as mulheres. Para todo lado iam satisfeitas consigo, coniventes com ela. Estava inacabada. Ao menos para os escalões. Aquela gente não tinha vida porque a quisera ter tão depressa.

Objec­tos que não da memória afastam-na do espelho com sagacidade.

Da terra. Da terra, dissera-lhe o amigo. Um rubor de pedra nos malares. Tinham-se levantado em segun­dos para aparar a noite. A noite estava guarnecida de esferográficas.

Aragem. Retoma o o alívio. A reunião dá medo, arremeda a convivialidade e dá folga à terra. Da figura no espelho funcionários menores levantaram-se afivelados. O sangue sabia ao estímulo dos passos que não se ouvem. Não encolhe os ombros, arremeda-se num esgar satisfeito consigo.

Conivente com eles até ao risco, não dá a cara à decifração porque não tem decifração possível .

Ainda há virgens nas notas e rabiscos, como reconhece finalmente.

Objec­tos fitam o lajedo do grande átrio sem destemperos.



Sem favor, num esgar a reaver antigas doçuras dissera-lhe o amigo «há tantas esferográficas postas à disposição, as duns e as dos outros, e a sua». A do frio? Remoça em segun­dos para aparar a gola do disposição... As folhas não o confirmam.

As quatro virgens de cobiça e da intriga apaixonam em escalões. Aquela gente não tinha vida.
É grande avondança em esta falsa gloria da moda.



Sabe a vida aqueles que contemplam e recontam e voltam a contemplaR as fremusuras das moradas dos motivos.

As forças e o ânimo apressam-se ou apresam-se.

As obreiras nas oficinas descontam a gloria perduravel e a sua face graciosa.

Monday, October 01, 2007

o surrealismo depois da morte


pusemo-nos a mirar com olhos de ver o L'Age D'Or do Buñuel e demo-nos conta de que o surrealismo já morreu há muito e que era uma coisa escura e doente e que o surrealismo é o depois da morte e o Cezariny também morreu sem que ficássemos a lacrimejar e deixou a massa à Casa Pia que não precisa mesmo dela e os filmes falta-lhes um surrealismo honesto porque hoje é dificil fazer filmes que não sejam pretenciosos e falta-lhes a qualidade poética para além dessa lagrima ao canto do olho que vem dos lamechismos neo-neo-realistas tão disfarsadotes que é um escape ai é ao excesso de intencionalides ou à pseudo-experimental ida às landes do não-intencional mas adorariamos que a coisa não caísse no kitsch e pronto vamos fazer ó-ó as duínhas

Friday, August 31, 2007

corrupções linguarudas



queixava-se inocentemente um cronista das corrupções da linguagem, bem escrita, bem falada, ou mal escrita, mal conjugada, esquecendo-se ele, como muitos outros do género que todos os dias se arrepiam com os desarranjos da linguagem (como os Gatos Fedorentos) que esta, qualquer que seja é espampanante corrupção





o policiamento da linguagem não é recente, e os latinistas, e cada vez mais as autoridades estatais, andam para aqui a «normalizar» a lingua a bem de uma comunicação decente, sem equívocos,





é certo que um babelismo generalizado é indesejável, mas contentemo-nos com as corrupções de linguagem que se fazem banais, venham ou não a pretexto de retorcidos sentidos ou de politiquices balofas, e saúdemos as literárias que cozinharam Camões ou Guimarães Rosa e todos aqueles que adaptam, traduzem, erram, achincalham, trocadilham, enriquecendo corruptamente a lingua





p.s.



escrevemos (citamo-nos) no post anterior, que «quando nos vemos ao espelho pensamos logo no Prado Coelho» - falar de Prado Coelho é falar de citação e especulação, de arranjos cortêses, de uma imagem em que nos revemos e pensamos como nos damos a ver


o desaparecimento do Prado Coelho é a ausentação de um tom mediático que ao longo dos anos cada vez mais se fazia em função das modas dos poderes, com algum lirismo estratégico, com colagens e descolagens rápidas a teorias, modas e politiquices - os seus Universos da Crítica prometiam no ínicio dos anos 80 uma radicalidade (é certo datada) algo mais borbulhante - EPC foi para nós uma decepção teórica porque esperamos demais dele, mas EPC também nos envergonhava no lê-lo quando poetava - o seu lirismo, tal como o do Lobo Antunes, roçava muito o kitsch, imitação babosa de nobres modelos





mas o pior é a ausencia de sucessores do género, e é pena que se faça um maior vazio na especulação destas questões caseiras entrançadas com as actualidades do mundo teórico, francófonas e mais além,





perdeu-se o ícone do intelectual cá da terrinha - as más linguas calaram-se e elogiam-no gordurosamente, como em todas funeralhadas





homenagear EPC é contuinar a ir frivolamente e profundamente para a cama com a actualidade, com a moda, com ou sem nostalgias de Barthes ou corruptos trocadilhos lacanianos, e com incomformismo e sensatez política (ao mesmo tempo, sim senhor!)





num país onde todos se calam no dizer o que vai na cultura, nas artes, EPC foi um vísivel lutador,


e é por essa razão que nós vamos continuar a cochicar, a achincalhar, a falar do que se teme falar: bem, mal, amável, polémicamente dos que mais gostamos, e sumáriamente do que nos desinteressa

Wednesday, August 15, 2007

OBRAS & SOBRAS










Ler Marguerite Duras
É pior do que beber aguarrás


Era uma vez uma menina
que era um rapaz


quando nos fomos ver ao espelho
pensamos logo no Prado Coelho


feminismo no cacém
já não interessa a ninguém


estivemos 20 anos à espera
desta eterna primavera


os melhores versos
andam p'raí dispersos


a uma mulher sózinha não se trinca nem a espinha
a duas mulheres unidas não se furam as barrigas









ADIVERTIMENTO


Não foi uma tarde, mas uma eternidade…
Somos duas há muito tempo como se fossemos uma só. Sei que isto custa a acreditar, como custa tudo o mais. Estivemos a amadurecer sentadas nos nossos desejos e escrevemos cartas de amor para encurtar as distâncias. Chegamos a um tom , a um estilo, isto é, a uma solidão desinteresseira. Escrever não é um acto a quatro mãos, mas pode muito bem ser a quatro patas. O amor que nutriamos uma pela outra acabou em inacreditável onanismo. Só agora percebemos que a escrita nos desenvencilha da triste tagarelice a que nos condenaramos. Ainda para mais hoje, em que o amadurecimento nos obriga a pintar os cabelos mas nos proíbe de pintar as unhas. E tu, leitora loura que nos lês com os pés assentes no chão , não te assustes com o que escrevemos. Mas pensa bem, Em cada homem há um inalterável cabrão que te abusará do corpo e passados os trinta e picos te abandorá por uma secretária ordinária. Trata-lhe da saúde ò filha!




Uma obra é uma obra
Filhos são sobras



«Sei de sobra
que nunca terei uma obra»
Fernando Pessoa





1



Não há nada como comer azeitonas numa banheira, a duas, ao fim do dia.


2



Descascar cebolas como quem faz uma coisa arrepiada
Sublime
Eu descasco de gatas
Como se escrevesse uma canção de amigo
Ai cascas de velha cebola
Sou sábia, incerta, ou tola?
Que na vida só se chega a bôla
Ai Ada, ai Ada
Qu'é da minha empanada?

Vai-se-me a vida com os ardores
Dos fogos que ardem como amor
Do fogo não fica a cinza
Só o bolor
E é melhor que não me casem
Porque toda eu sou súor
Ai Ada, Ai Ada
Estou tão estafada?



3


Eu era toda tremeliques. Gostava de acampamentos
Cheios de moças friques
E à noite à lareira
Sentia alguma ciumeira.
Também gostava de cheirar
As cuecas a secar.




4


Lídia, se fores à janela
Manda um beijo à Célia
Que é tão bela.



5


Tenho o Vazio a encher-me
O corpo em todas as partes.
Há quem tenha infinito a mais
Na cabeça ou no olho do cú.
Eu tenho infinito a menos.
O veneno és tu.


6


Helena de Troia era tão fascinante
Quanto uma giboia.
Suspeito que algures na Amazónia
Helena devora gringos míopes
Com a sua boca-sexo
Entre araras e papa-formigas.



7


A natureza maquilha-se todos os dias
Não é òbvia como o pau estendido de um homem
A espera que uma mosca lhe poise em cima
E o cague.



8


A ti que só vias partes sem tudo e guardavas rebanhos
O que é que posso dizer?
Que vejo tudo sem partes.
Que tomo banhos e cuido das banhas.



9


Não entendo como é que uma virgem
Ainda por cima Maria
Conseguiria
Parir um menino Jesus.
Mas consigo perceber perfeitamente
Como é que um gajo chamado Jesus
Consegue parir
Por antecipação
Uma mãe de estimação.



10


Pús as minhas memórias todas no prego.
Rendas, joias de familia, a máquina fotográfica do tio…
As fotografias vendi-as na feira
Da ladra.
Cartas também de amor
Queimei-as no fogão
Ou limpei a menstruação.
A vida, no particular foi-se embora aos poucos.
A outra, a em geral, também já cá não está.
Fica-me este concreto a metro.



11


A inadequação dos machos ao que está à volta se não é total é brutal. E no caso de não serem eles os autênticos extraterrestres só posso concluír que extraterrestre é a natureza. Provas cientificas não faltarão.



12


Gosto da minha periferia
E da cosmética barata.
Do chá de camomila
E das garrafas de vodka.
Tenho nostalgia dos tempos
Em que as mulheres usavam combinação.
Agora andam descombinadas.
Ai Madre Teresa!

Tuesday, August 14, 2007

variações wittgensteinianas de Rosa Davida


PEQUENA SÚMULA DEPILATÓRIA,
OU VARIANTES QUE DÃO ADEQUADO TRATO
AO TRATADO DO SR. L. W.
POR ROSA DAVIDA

(escritos neste 14 de Agosto de 2007 em cima de uns guardanapos)



O mundo é um caso
O mundo é tudo o que m-amamos.
O mundo é o que se mama.
O mundo é tudo o que se casa.
O mundo é tudo o que vem à baila.
O mundo é a actualidade dos fa(c)tos e dos afectos.
O mundo é a transição das modas.
O mundo é a inclinação dos desejos.
O mundo é a transcrição meticulosa da coscovilhice.
As coisas são o como se amanham.
As coisas são as compras que fazemos e as inutilidades de que nos desfazemos.
O que vem à baila é a desarrumação das casas do mundo.
A arrumação/desarrumação é o que ajunta e afasta as coisas, e as torna apropriadas ou propícias.
O mais importante é sabermos em que sítio é que estão exactamente as coisas.
No arrumo da Casa do Mundo o lugar das coisas não é um lugar qualquer – cada disposição torna mais ou menos especial os restantes lugares que com esta se relacionam.
As coisas fora do seu sítio tornam o mundo desleixado.
A evidência do caixote-do-lixo torna muitas coisas dispensáveis (ou recicláveis).
As coisas servem para fazer coisas, para dar uma certa beleza ao que se passa na passerele do mundo, ou para nos entre-termos com elas.
Pensar em «todas as coisas» ( e ao mesmo tempo?) é um disparate que só ocorre a quem não pensa em todas as coisas como deve de sêr - «todas as coisas» é uma ideia indefenida para agrupar a partir do quanto (pouco) se sabe e tentar adivinhar «abstractamente», num golpe de bluff, o «resto».
Cada arrumação inclina-se para muitas possibilidades de outras arrumações.
Arrumo e asseio de linguagem fazem-nos mais entendiveis e comunicantes.
O asseio de linguagem faz parte de um asseio geral que torna tudo mais belo, apetecível e convivial.
Os casos são as ligações que decidem as coisas, mesmo quando são dúbios.
Um caso é o que põe em movimento de resolução a degradação das relações.
A aparência é um efeito do «realidade» e o principio da inveja.
A (boa) aparência devolve aos objectos a sua «bondade» potêncial.
As aparências tornam os diversos aspectos da realidade conectáveis (e colectáveis) – chegam assim às pessoas mais rigorosas/vigorosas.
As aparências implicam uma soma curcovilhante de suspeitas.
A veracidade ou falsidade das aparências não dá garantia de que algo seja difamável.
Uma aparência é um convite para «uma certa lógica».
A veracidade ou falsidade das aparências não dá garantias de que algo seja logo difamável.
Uma aparência é um convite para aprimorar uma lógica.
A veracidade das lógicas das aparências depende da veracidade das relações que nos são facultadas.
A conversa (interna/externa) sobre a aparência lógica das relações é o pensamento.
Aos conjuntos de pensamentos que imbrincando uns nos outros nos dão a sensação de que algo é verdadeiro chamamos mundaneidade.
Nem tudo o que pensamos é consequente ou possível.
Podemos pensar coisas muito «ilógicas» (como os temas mitológicos) mas não lhe damos uma atenção prática por aí além.
Um pensamento correcto deve ter em conta não só a necessidade de o exprimir como os incómodos ou prazeres que possa provocar.
A ambiguidade das palavras pode gerar equívocos filosóficos quando se usa uma lógica pobre, mas faz riquíssimas insinuações se usarmos uma lógica enriquecida.
As confusões que surgem fazem parte do adiamento do desfecho do drama – o interesse dos fa(c)tos deve-se a um bom tratamento telenoveleiro.
Quase todas as observações acabam por dizer algo de si próprias, tal como a roupa que vestimos índicia comportamentos e apetências.
O pensamento é um conjunto de observações pertinentes que nos dão dicas (cartografáveis) para nos orientarmos na vida.
O que torna essas dicas pertinentes é o uso da linguagem e os comportamentos adjacentes.
As linguagens que construímos são estratégias de arrumação das coisas através de redes hierarquizanteas de palavras.
Uma insinuação é um ataque à estabilidade da aparência da «realidade».
Temos, regra geral, mais em conta os nossos convictos modos de arrumação do que os de qualquer amiga ou vizinha.
Uma construção lógica leva-nos com mais entusiasmo a onde já estavamos determinadas a ir.
Uma insinuação comunica mais sentidos do que aqueles que pusemos nela.
Uma insinuação propõe a existência dissimulada de «outras aparências das coisas».
A tarefa da filosofia é a da depilar a verdade antes desta se mostrar nua.
O impensável é o que é impossível de pensar, mas o «impensável», segundo o muso comum, é o que mais acontece.
Há coisas que não sabemos expressar e para as quais algo chamado intuição parece acenar – é o «intrigante» indizível.
Tudo o que é pensável pode ser feito com simplicidade e limpeza, por isso muita porcaria e complicação hão-de vir ao cimo.
O que acaba por ser demonstrado é frequentemente o que se andava a dizer pela calada.
Uma proposição é o que dá conta de uma série de propósitos e de alguns despropósitos.
Um nexo de causas é uma suspeita que se adensa.
O livre arbítrio é a liberdade que gozamos cá com os nossos botões de nos dizermos o que quisermos e de imaginarmos o que desejamos.
A fatalidade é o saldo para os outros de uma vida no preciso momento que vamos desta para melhor.
Uma tautologia é o que nos repetimos para nos convencermos de uma certa coisa com argumentos cada vez mais refinados.
A filosofia é uma psicologia minimalista com o preconceito de ser psicologia e que dá um ar de tratar soberanamente da arrumação definitiva do mundo.
A filosofia parece que anda a des-implicar as criaturas dos seus pensamentos mais humanos (dos arrumos e desarrumos da «existência») substituindo-os por implicações aparentemente menos singulares e mais vastas.
Uma suposição é o resultado de muita coisa que se foi dando conta.
Sabemos que o sol nascerá amanhã, estejemos vivas ou mortas, ainda que alguma lógica nos tente convencer do contrário. É o triunfo impiedoso do senso comum.
Existem mais necessidades metamórficas do que lógicas – as coisas estão em metamorfose permanente e a lógica tenta fintar o metamórfico depurando-o de todas as suas inclinações e postulando alguma essência aqui e acolá.
O mundo está dependente de muitas vontades ao mesmo tempo.
A cada morte o mundo passa a ser uma disputada herança.
Há proposições cujo efeito é bem mais devastador do que outras.
O sentido do mundo acompanha-nos sempre no mundo – se o sentido estivesse fora do mundo, o mundo seria destituído de sentido.
Um sentido é sempre na imanência – só é sentido o que se sente.
Caso haja algo parecido com divindade esta só pode ser a consciência na imanência.
A nossa vida é tão variada que o infinito só nela tem sentido como uma metáfora derivada de jogos matemáticos.
O enigma persiste como uma pergunta que ainda não está bem formulada.
A questão que se coloca é se podemos formular mesmo «bem» uma adequada pergunta alguma vez.
O enigma é apenas o sentimento de inadequação e de in-formulado.
O cepticismo é a honesta desconfiança quanto a um diagnóstico sempre certeiro baseado em lógicas ou filosofias.
O cepticismo é um diagnóstico reservado e cauteloso.
Sobre o que ignoramos nada podemos asseverar.
Sobre o que deviamos estar caladas apetece-nos fazer insinuações.

Thursday, August 09, 2007

vimo-nos gregas


a grécia serve para ensaiar distancias e próximidades, respeitos e desrespeitos, falsas sabedorias e paraísos desfeitos


a grécia nesta lingua que nos inscreve foi no século passado feminina, com as traduções gregas e romanas da Maria Helena da Rocha Pereira e o caso poético Sophia


é certo que esta grécia acertada foi procedida pela grécia homossexuada do Botto e pelas grécias dos heterónimos ditos Pessoa, onde acedemos quer ao epicurista Reis, ao dionisista Campos, ao Sofista pseudo-naif Caeiro e ao neo-platonista Fernando


a Sophia namora o Pessoa, como se o Pessoa não fosse mais grego que ela, isto é, menos antigo, menos intacto, mais exacto, menos católico, menos clichê de estátua grega e anfora, ele que escreveu em inglês sobre a nudez das estátuas gregas e que falou veladamente desta Grécia encalhada, como o foi quase sempre a Grécia, disfarçada de uma espécie de país que se ancora em metáforas vagamente purificadoras


apesar e por causa do cal, das anforas, das velhas mulheres vestidas de negro, das frescas especiarias, das praias de brancas areias e àguas supostamente cristalinas há algo de ostensivamente higienista em Sophia, de dona de casa que quer que a criada limpe bem tudinho até que não fique mácula nenhuma e acabamos por perceber nesta vigilância da criadagem não muito distinta dessa outra vigilância de outra mulher nortenha (a Agustina) que o horror ao sujo é uma condição trágica - «eis aqui o país da imanência sem mácula» - é certo que o país viva num outro género de registo e higíene que é uma mácula maior a que os gregos chamavam hamartia, mas os gregos são sujos até na sua exactidão e são muito sujos e malcheirosos aquando das hecatombes, quando se purificam para os deuses e se banham, sem frívolidade, nos sangues dos bichos


a grécia de Sophia é arrumada, burguesa, pretenciosamente turistica, mas de um turismo como já não há, quando as praias mediterranicas eram deveras pitorescas e permaneciam com o ar de serem para marinheiros que partiam enquanto a morte os não levava - é uma grécia vista com olhos nórdicos, como os de Holderlin em busca de uma grécia mais ideal e tragicamente perturbante - os nomes dos deuses das ilhas dos poetas e dramaturgos são de efeito incontornável


a sua arte poética é a da consumidora de quem anda em busca de um artesanato autêntico - a loja dos barros é heideggariana nas anforas que se podem levar para casa e torná-las companhia «mortal da eternidade» - compara a poética a um artesanato: «o artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unida.» (?) - há uma profundeza que não lhe encontramos e um rigor obstinadamente reivindicado - apesar disto há alguns versos belos, sinceros, esteticistas, de boa-vontade católica


queixamo-nos de Sophia porque não nos recompusemos dessas histórias muito pouco gregas, de pesado remoroso, de catolicismo apoquentado que são os seus contos para crianças - a Menina do Mar, a Fada Oriana, o Rapaz de Bronze - coisas tristes que mais entristecem a consciência das crianças - a nudez dos éfebos não nos fez mais nuas - é certo que o nudismo é um miro grego, das Gymnopédies à história do nu do sr. Clark, passando pelo nudismo militante


não sei se foi por causa da Sophia, se da moda do nudismo nos meios oxfordianos, que vimos o M. S. Lourenço nú numa das ilhitas traseiras em frente de Cabanas de Tavira no verão de 1971 com os seus óculos redondinhos estilo John Lennon

Saturday, August 04, 2007

da necessidade da «usura»


enxovalham-nos problemas de estilo - somos criaturas muito mas muito docinhas - não militamos nessa horda de patetices pretenciosas que são as escaramuças universitárias, mas também não nos vemos no espelho pequeno-burguês de raínha má, nem no género emporcalhado de autor maldito, ou no género suburbano - que nos perdoe esta gentalha toda


somos algures burguesas, cultas, refinadas, perfumadas, nada dada a esteticismos Tokalon, nem a idas afectadas à opera ou cinéfila: somos mais práticas na abordagem músical, preferindo realizadores e compositores às mariquices interpretativas de músicos e actores - é certo que muita música e guião soam radicalmente melhores, mas não são os «interpretes» generosos criadores de algo algumas vezes soberbo, mas usurários que dão o corpo ao que se pede mais imanente


Tuesday, July 31, 2007

ai o conceito é tão metonímico


continuando a saga do nosso L. W., diz ele:


Os conceitos levam-nos a fazer investigações. São a expressão do nosso interesse e guiam o nosso interesse.


o que é o mesmo que dizer que os conceitos não sabem estar quietos, e que essa inquietação é metonímica: eles não querem ficar como estão, querem desenrolar-se e meter-se (interesseiramente) com as coisas e sobretudo com outros conceitos igualmente dados a mexericos e muito (levados da breca!) metediços


diz também


não consideres uma afirmação hesitante como uma afirmação da hesitação


o escrupulo moral e a vontade de chegar a algum lado estão sempre a puxar as orelhas ao menino luísinho - que parece na verdade muito hesitante nas suas caninas investigações filosóficas - no seu faro não se adivinha onde é que está o sujeito ou o criminoso


mas também podemos perceber no estilo de L. W. um pudor estratégico e um efeito - e lá voltamos ao romanesco: ele está através de hesitações a tentar ser veemente? estará a falar das suas hesitações,? das dos outros? estará a afirmar? a negar? a fingir?


e o que é hesitar? é não se atirar à maluca? é uma sábia prudência? é uma desapetência?

show job

o trabalho (tele)novelesco consiste em dissimular memórias e ir adiando o fim - é certo que uma trama secretamente epistolar se parece intrometer para cativar amorosamente o leitor

suma patológica


deu-nos vontade de ir ler o ludwig wittgenstein segundo a tradução do M. S. Lourenço que adorava a vulgata e julgamos que a tradução para português do Ferreira de Almeida - as traduções das bíblias não estruturaram as falas das linguas latinas directamente, mas foram-se inclinando lentamente sobre a lingua palrada até esta ficar depurada pelo fantasma da prosa de S. Jerónimo - adaptações mútuas do palrado ao traduzinte


lê-se no prefácio do tradutor uma sugestão bela e quase epidémica, mas não é epidémica porque é demoradamente viral, como o sugeria o velho Bourroughs no livro com o Daniel Odier, The Job (a linguagem é essencialmente um virus), mas, diziamos, fala Lourenço do que é conclusivo em Wittgenstein quanto às hipóteses de tradução:


Como os problemas filosóficos são patologias que ocorrem no interior de jogos da linguagem dados, a tradução filosófica executa a transferência destas patologias de uma lingua para a outra. Eo ipso fica também demonstrado que um problema filosófico não é um problema de uma lingua dada, mas antes um problema comum a um certo número de linguas. Fica assim constituída na lingua para a qual se traduz a possibilidade de encontrar as mesmas possibilidades que se descobriram na lingua original.


é um belo acontecimento, esta infiltração patológica das traduções filosóficas nas nossas vidas, aos bocadinhos, aos poucos e poucos, com patologias a chocarem com outras patologias, e ao contrário da ideia de autênticidade, a gerarem cada vez mais demências mascarantes


não partilhamos, pesem as fidelidades tradutórias, o optimismo de que possamos comungar (e o termo religioso é justo aqui) com o mesmo ânimo e sabor os mesmos problemas - as mudanças virais ocorrem na adaptação do vocabulário a outras linguas, e essas pequenas mudanças são decisivas de um modo precisamente ao oposto ao papagueado pela hermeneutica heideggeriana - desidealize-se definitivamente a fidelidade a um sentido original, caso esse sentido exista em falsa integridade


desconfiamos, nestes jogos a muitos e muitas de muitas linguagens, do que é alguém quereria dizer com alguma coisa - sabemos que pretendia tentar dizer alguma coisa, entre o ambiguo e o preciso, e é nesta inquietação intermitente que murmuramos as nossas filosofias a fazerem-se pessoais, jogadas, com bluffs e sem bluffs


para quem gosta de se emaranhar nestes assuntos pode linkar para a amostrazinha do diccionário dos termos filosóficos intraduzeis :http://robert.bvdep.com/public/vep/accueil.html com a consciencia enxuta de que muita coisa se traduz viralmente, mas não virilmente (pois também terá o leitor de traduzir à sua maneira o seu francês na sua carne)


pensamos assim como quem metaforiza e quer ir a algum sítio que a vida se vai enovelando em sumas patologias - queria o filósofo austriaco cuidar da linguagem, e «desonevelá-la», mas a filosofia telenovela-se, pelo menos nestes medias de agora, telemáticos ou telepáticos, e é neste sentido que o fulgor da filosofia acaba quase sempre por regressar ao fulgor novelesco, mesmo quando o romanesco já foi alvo de tantos convincentes epitáfios

Monday, July 30, 2007

a vida da Rosa Davida e par aí fora



  1. Criada entre criadas, davidei-me nas iguarias que se me foram oferecendo. Fiz-me moça muito almoçando e robusteci as minhas formas sem chegar a gordura para além de fermosura. Perdi muitas oportunidades de especialidades que pudera cultivar. Bailei muito i. E mais bailei muito i enquanto os outros e as outras arengavam seus labores nas praças.

  2. Iam-se os dias para diários, limpavam-se e desossavam-se na escrita, ficando límpidos, nítidos e gregos à sua maneira, se bem que esta maneira grega fosse praticavel e pouco auroral.

  3. Aprendi a conviver com os meus membros e registei os esbracejamentes como calamidades passadas. Admirava a gestualidade musculada da Calamity Jane na interpretação da Doris Day, mas não punha em causa o meu talento conformado pelo ponto-cruz, embora me entediasse de morte nas tardes em que as tias solteiras me obrigavam a tapetes-d'arraiolar.

  4. Era boazinha, um bocadito boazuda, forte de espirito, recatada quanto baste, dada a inocentes gargalhadas insolentes e comentários estapafurdios aos pequenos-almoços, e bocejos pouco depois dos jantares. Não dei aso a preocupações, mas dei asas a secretas ocupações.

  5. Falava e até gritava com os meus botões. Queria-me artista desde logo, antes inda das insolências das adolescências. Pintava (ou garatujava) sobre os cromos dos asnos dos meus irmãos que se beijavam uns aos outros em longos linguados. Eu preferia patas de peluches. Ai deus i u é.

a ameaça da madrasta


Dão-nos a honra de manequim

para dar corda à nossa ausência.

Dão-nos um prémio de ser assim

sem pecado e sem inocência.


escreve a natália correia


Como se quem tivesse partido não fossem os homens, mas algo de essencial com eles, esse objecto primitivo feito em seguida objecto patriótico. Como se a percepção inicial do pai real, o pai da estrutura, fosse a de um objecto perdido com o qual não temos relação, desde sempre e definitivamente Outro. Como se essa percepção da perda desse 'intimo-estranho', das Unheimlich que caracteriza para os humanos o pai real, fosse duplicado pela ausência física e simbólica do pai. E não restasse senão um pai imaginário e todo poderoso.


escreve a maria belo


mas ficaram-nos os padrastos e os padrinhos e pior que a ausência dos pais é a ameaça pelas mães da hipóteses das madrastas - esta figura mitológica não é só daqui, do imaginário lusitano, mas é a consequência de uma ausência que regressa em força com o mal. As madrastas dos mitos já crescem em casa com a etiqueta da humilhação, as madrastas portuguesas estão por aí à espera (ou pior, ao lado, para sempre), e o terror eminente do masdrastado constroi, como suplemento, essa ambivalência do pai que retorna como um Ulisses trazendo consigo a Calipso, para ficar escondido mais perto, protegido dos filhos, na fama-infâmia de um lar de terror e do ressentimento materno a construir-nos já ressentidas


essas madrastas misturam-se com a mãe, e a mãe é amadrastada, o que nos despeja renovadamente para um pai que também não nos quer assim assumidamente, se calhar quer às escondidas, caso regresse, ou caso regressado nos tenha trocado, a nós filhas-um-bocado-mãe pela «outra», o que é um pesadelo mais complexo que a orfandade real


damos assim corda às nossas ausências, no natalício dizer, sem pecados e sem inocências, com muitas desculpas para termos desculpas, extremando-nos a colocar molas na roupa com as cores da roupa, maníacas da lexívia perfumada e do ajax limpa-vidros, da camisa bem engomada e de outras tolices domésticas


a americanização estará a mudar estes hábitos centenários? outras culpabilidades sem culpabilidades nos minarão como sempre, substituindo a ausência pelo trabalho - mulheres machando-se falsamente emancipadas, numa solidão sem pais nem filhos e muitas plásticas

a pátria deles


não lemos muito a Natália Correia nem nos lembramos de uma frase sequer de coisas de TV onde esta falava de mátria, mas sabemos que o estado é uma coisa de homens, fica ao lado das mulheres, por mais que este se pareça um prolongamento da familia, e mátria não convém porque não se precisa de estado travestido de «estada» - podemos livrar-nos aos poucos da pátria como duma tristeza tonta, porque nós só estamos connosco, com os que cá moram, os que cá vêm - o resto é a simpatia universal, algo abstrata, cidadania paisagistica do mundo, com o ar de quem se preocupa com outros mais próximos ou distantes, porque não nos podemos deixar de sentir da mesma bichesa e da bichesa maior de todos os bichos


os estados eram o pretexto para as guerras deles, para se matarem uns aos outros e se roubarem e pelejarem como cavaleirinhos de Tavolas Redondas e irem-se de casa para ultramares e foder com as ninfas dos cantos nonos


os nossos varões têm um medo que se pelam da domesticidade e de aturarem as neuras das gajas com quem escolheram viver até que uma cena qualquer ou a morte os separe


o país que parece chamar-se Portugal fez-se contra os amores de Tereza, só para lhe dar um ínicio, com o filho, adolescentíssimo, a batalhar até não querer mais só porque a mãe foi amada por alguém quiçá melhor que seu pai nas pelejas da alcova


e a Castro assassinaval só para não nos castelhanarmos na soberania como o pretende el Saramago


a cena repete-se com Leonor de Teles, aleivosíssima segundo as crónicas do Fernão, melhor a dar prazer do que a fazer filhos, quando os nossos reis foram pródigos em aleivosias e bastardices que garantiram novas dinastias e o povo não se alvoraçou


o inferno sexual começou com a Filipa da familia dos Lencastres que já era uma puritana bem antes dos protestantismos e das hipocrisias com que os tipos países do norte da europa disfarçam a falta de apetite pela vida nítida - estaremos a ser racistas? Fez filhos cultos? Educou-os ela? Ou tiveram quem os instruissemo como deve ser. Perguntas sem resposta.


Maria Pia, muito mais tarde, é o protótipo dos inferninhos eclesiásticos, salazarismo antecipado com bufos na esquinas - e bufar, literalmente, é o gesto portuga mais comum, lamento de quem denuncia sem dar o couro ao manifesto


o que é bufar, é expelir ares pelas «bocas» ou pelos cús, é queixume, estafadismo, cansaço, resmunguismo, não estar para aturar mais


damos um belo exemplo desta verve peideira de aljubarrotas encontrado na net como defenição de bufar: depois de comerem aquela jeijoada, fizeram um campeonato pra ver quem bufava mais fedido


teriamos preferido uma terra de bufões, cujo sentido não deve andar longe, mas que é mais despejado e assumido

almada, os outros, as outras, com, contra e etc.



chega a ser pirosíssimo no que pinta o Almada Negreiros, mas também dá ares de ascetismo, de não querer ter haver com pieguices nas numeralogias e coisas afins - citar-lhes-iamos os textos coleccionados pelo Herberto na sua antologia, se bem que sejemos um tanto ou quanto discordantes quanto à sua política da poética - supostamente clássica. A autenticidade heideggariana equivale-se-lhe a ingenuidade, o que ao fim e ao cabo vem a dar em salazarismo doce, o mais ameno possível. E até o romance Nome de Guerra sobre os incovenientes das paixões assolapadas pelas varoas fatais tem esse funesto final com a preferencia das estrelas à vida em versão desculpa. Também podemos conversar com estrelas, nascer para vidas sempre novas e não desistirmos das complexidades e dos dramas que o amor nos oferece terrivelmente e que nos espertizam e saloiam se for preciso. Almada começou nietzschiano, embora com cenas de òdio, e acabou profeta dos bimilénios a queixar-se que não no entendiam. Mas o pater familia com a mulher a lavar pratos e a mudar o cócózinho dos putos é a sua imagem emblemática. A casa portugueza de Lino, a familia portuguesa de Almada. Ai portugueses e portuguesas muito salazararam os nossos progenitores sem perceberem como se livrarem disso e continuarwem a culpar o homem, tímido, recatado, que eles também o soiam ser. Foi o tempo do fado e da «dona Amalia», fado que nunca mais poderá ter uma migalha de ingenuidade ou autenticidade do que era o tal fadismo. Mas pode ter outras coisas mais canalhas, mais inteligentes, mais espertas e muito menos saloias.


No entanto o Almada é pai deste estilo oral de que não nos safamos, e a sua Engomadeira ou o K4 são as mães da possibilidade de nos prosarmos poéticamente à quase um século, e generosamente - penso no Nuno Bragança, na Maria Velho da Costa, no Alvaro Lapa


há uma oralidade pitoresca em outros, e também os regionalismos do Aquilino Ribeiro e as falas meigas do eça, mas Almada fez aqui o que Guimarães Rosa fará mais tarde para a outra literatura portuguesa - pôs-nos a falar com as nossas ralações e colocou o narrador vulnerável e desajeitado à cata de si mesmo


o Nuno Bragança, que é maravilhoso no ínicio da Noite e o Riso sofre com o estilo copófonico do tio Hemingway, e o ar duro de quem tem estilo, intimidade e saber, e de que a vida tem que nos dar porrada e nos levantarmo-nos do tapete para a porrada que vem - o homem que sabe e não sabe mas finge que sabe, que leva nas trombas, mas que não perde o ar, e, sobretudo o estilo, de quem sabe


o Nuno Bragança é um desconhecido do Álvaro de Campos, é o homem que se conhece levando porrada - isto está mais repetitivo quase que a Stein


e depois há a Maria Velho da Costa, tão suserana das suas manias algo pseudo-inglesas, mariquices de menina fina a fingir-se compincha da criada e de quem está com o povo e algumas vezes com Moscovo e de que sabe o seu shakespeare


o Álvaro Lapa, coitado, não chegou a carreira literária, publicando ao lado das pinturas, ao lado do alcolismo, mas sempre com esse ar de quem mija prosa e de que mijar prosa dá algumas alegrias que nos livram, beatnickamente, dos salazarismos literários que é o estarnos sempre a limar as unhas da poética com censorismo horaciano - até o Herberto e o descarado do Cezarinny se afadigaram no postumismo, a queimar, a afinar, a ter medo que venham a dizer mal muito depois


há alguma razão no M.S. Lourenço quando fala dos mestres que ficam a afinar anos antes de publicar e cita o Wittegenstein, homem de um só livro em busca de um pelo menos segundo livro, mallarmeano e filosofal, mas que deixa, sem querer, como o Aristóteles, uma obra vasta, nesse drama eterno que são os impublicados, de Pessoa a Kafka, e que são bons para entreter controvérsias filológicas e outras mariquices - o mesmo diz o Herberto a partir do Edmundo Bettencourt, como o glorioso escrupulismo mas eu diria com a neurose de quem se olha demasiada na obra que é um bico-de-obra da variante que teme que lhe cheirem no cú alguma mediocridade ocasional que todos, mesmo os sublimes, a têm


falamos destes nomes, nomes amigos, aqueles que, citando o Lapa entrevistado pelo Silva Melo (que não gosta, com alguma razão, do Almada), com quem vamos e (dizemos nós com se calhar outras e outros) contra quem vamos ao mesmo tempo - não podia deixar de ser de outro modo. Com contra e contra com. E com despacho. Etc.


Monday, July 16, 2007

sobre a Rosa Davida


Intriga-se o mulheriu sobre quem é a Rosa Davida - é uma amiga que é amiguinha e amigona, companheira de Rute literária.


Encontramos entre os nossos papeis os seus propósitos escritos numa altura (há meia dúzia de anos) em que prometiamos umas às outras avançar para publicações on-line:




Há mulheres que são mulheres a metade, eu sou uma mulher a dobrar.

Uma Rosa é uma Rosa é uma Rosa & a Vida é a Vida é a Vida

Não há Rosa sem senão.

Davida é Rosa em roupão.



Ensaios em saias

1.Davida complexa
2.Davida sentimental
3.Davida sexual
4. Davida depois Davida
5. Davida mais ao menos
6. Davida dividida

Friday, July 13, 2007

safando-nos de safo


Safo, a nossa velha amiga, não terá sido a primeira a mostrar o amor como corpo fremente pela escrita, mas é aquela que nos chega até hoje como uma voz que grande parte da escrita amorosa persegue e ecoa - é impossível desviarmo-nos dela, mesmo ignorando-a. Por isso também a traduzimos em velocidade, em colaboração com os demónios internéticos. Muito menos traída que o nosso Guilherme, também fomos mais descuidadas e impróprias na desgarrada apropriação. Mas não queriamos morrer sem uma atenção, mesmo descuidada, à poetisa de Lesbos, pastora de extremismos amorosas. E assim de safo nos safamos.


Afrodite, de Kronos emergente espuma, tu que assentas no brilhante trono e que sabes habilmente dispôr dos enganos de amor, imploro-te, não asfixies o meu peito sob o peso de tristezas e dores. Mas primeiro acede às minhas preces como quando antes me socorreste, deixando o palácio de teu pai e descendo sobre o tanque dourado. Teus elegantes passaros levam-te do Olimpo através dos ares agitando rápidas asas. Logo que chegarem os melismas da tua divina boca, ò deusa, interroga-me com palavras flamejantes!
Ah! Quantos tormentos dão pasto de chamas ao meu coração! E o que é este desejo de me fazer perdida? Porque é que busco novas ligações amorosas? "Quem ousaria ofender-te ò Safo! Se hoje te fujires, amanhã te farás buscada; se ela se recusa e a teus dons se esquiva, cedo se oferecerá de bandeja, se hoje se enoja amanhã procurar-te-á com redobradas ganas, mesmo que o não queiras!” Vem, vem, desde agora, ò deusa, emergir-me nesta selva cruel de tormentos! Que os desejos acampem em meu coração!

Não me recuses o teu diligente socorro! Pareces-me igual aos deuses, quando em teu redor sentada, devagar, escuto doces palavras e acolho o teu sorriso incendiário. Eis o que me perturba até ao fundo do peito. Mal te ponho os olhos erm cima, a voz não acompanha meus lábios, a língua desata-se, uma chama subtil corre em todas as veias, as minhas orelhas sentem o tremor, um suor frio inunda-me, o meu corpo freme, fico mais pálida que a erva desvanecida, a respiração esgota-se, e parece que estou perto de expirar. Mas é necessário ousar dado que a necessidade é bem maior que a criatura...


Todas as companheiras cortaram corajosamente os belíssimos cabelos sobre o seu túmulo.

Se Zeus quisesse dar uma rainha às flores, a rosa seria a rainha de todas as flores. Continua o ornamento da terra,a mais bela das plantas, a menina dos olhos das flores, o esmalte dos prados, beleza suave e incontestável: exala o amor, atrai e fixa Afrodite: todas as folhas são charmosas; o seu botão avermelha e entreabre com uma graça infinita e sorri déliciosamente aos amorosos Zéfiros.

Inclemente é o caminho da posteridade.

Sombras não aquecem nem recordam sombras.

Vem às nossas deliciosas refeições, mãe do Amor, vem preencher de um néctar agradável a nossa dourada corte; que a tua presença faça nascer a alegria no meio dos teus convivas e dos meus.

O amor vencedor dos obstáculos perturba-me e agita-me. É um pássaro suave e cruel; a ele não me sei opor.

Atis, é-me agora ignóbil – seus quereres voltaram-se para a bela Andromeda.

A lua e Pléiades estão deitadas: a noite dispôs já metade do seu curso, e eu, infeliz, estou só na minha cama, acabrunhada em tristezas...

Ò minha terna mãe, não posso, infelizmente afadigar-me em lavores de donzela: a temível Vénus subjugou-me imperiosa, e o meu violento amor para com esta jovem ocupa-me inteiramente. Como é que esta mulher grosseira e sem arte pode encantar o meu espírito e amarrar meu coração? Não sabe mesmo deixar flutuar a graça e os panejamentos dos finjimentos!

Luto e lágrimas não devem grassar nas casas do poeta: é uma fraqueza indigna dos servidores de Apollon.

A criatura que é sómente bela, é-a apenas por um dado tempo. Olha-se-a e pronto. Mas a criatura sábia e boa é inacabadamente bela.

Para mim, que gosto de uma vida frívola e voluptuosa este amor e seus prazeres presentes não me impedem de fazer acções brilhantes e honestas. Não sou de um carácter impetuoso e fervilhante. O meu espírito pelo contrário é tranquilo e calmo. As riquezas sem a virtude não se safam de censuras; mas desdenhar da virtude e as riquezas, aí está o cúmulo da felicidade.

O ouro é filho de Jupiter, não oxida, nem os vermes corroem este metal, que fascina caprichosamente os mortais.

Noivos felizes: vosso casamento realiza a vontade de antigos desejos. Possuam-se as jovens belezas que se desejam! Arquitectos, dai mais elevação a estas portas, porque o noivo que avança é semelhante ao deus da guerra: eleva-se mais que o maior dos grandes. Ajuntai-vos todos, e oferecei libações fazendo votos de felicidade aos noivos. Nunca uma rapariga numa hora assim foi tão extrema em beleza.

Crepusculo, trazes contigo todas as felicidades: és a hora em que a terra se deixa abraçar pelo olhar ligeiro, encaminhas os rebanhos maternamente. Crepusculo, reúnes todos os seres que a Aurora com sua luz dispersou.


Virgindade, virgindade, para onde te foste quando me abandonaste?
A ti não voltarei, não voltarei jamais!

Vinde aqui Musas, derramai a vossa luz!
Vinde agora, Graças delicadas, e vocês Musas de resplandecente cabeleira...
Vinde castes Graças aos braços de rosa, vinde, filhas de Zeus! ...

Alaúde divino, responde os meus desejo, torna-se harmonioso! ...

É ti, Calliope... Os desdéns esticam-te a corda e espicaçam-me a verve.

O amor agita o meu coração como o vento agitou as folhas dos carvalhos sobre as montanhas...

Voaria sobre o cume elevado das tuas montanhas e lançar-me-ia entre os teus braços, para que teus suspiros me ensadeçam...

Inflamas-me... esqueces-te da minha inteireza trágica. Gostas das outras como se pusesses o inesquecível numa prateleira.

Põe coroas de rosas sobre os teus bonitos cabelos; caminha com os dedos delicados a estrada rodeada de ciúmes...

A bela jovem que se atulha de flores parece ainda mais graciosa.

As vítimas ornadas de flores são agradáveis aos deuses, desprezando todas as que não se deixam entronar pelas grinaldas...

Vou cantar agora arias melodiosas que farão destemidas as minhas amantes.

O roxinol anuncia a primavera pelos seus aveludados sons...

Várias grinaldas e várias coroas de flores cercavam o seu pescoço...

O Amor é filho da terra e do céu...

A Persuasão é venal rapariga...

Congratula-te, jovem esposa: congratula-te, noivo invejável!...

Amigo, têm no que diz respeito a mim; que os vossos olhos brilham de qualquer seu fogo e qualquer sua graça...

A água fresca de um riacho murmura devagar sob os ramos destes pomares...

Dormi deliciosamente este meu sono nos braços da adortável Citéria...

O barulho das fodas nas folhas agitadas dissipou o meu sono...

Os seus cantos eram muito mais suaves que o som da lira, e eram bem mais preciosos que o ouro mais puro...

Amor, ministro velhaco da maravilhosa Vénus...

Estas pombas tímidas sentiam a sua coragem resfriar-se; deixavam cair languidamente suas asas cansadas...

Cumprimentem de minha parte a rapariga de Polyanacte...

A Aurora de ténis de ouro desponta já no horizonte...

Todas as cores se confundiam no seu rosto...

A lua iluminava um céu cheio...

As estrelas escondem os seus fogos brilhantes na vizinhança da lua: quando perfeitamente arredondado, este bonito astro ilumina a terra...

O sono amolecia as suas pálpebras...

Que os ventos levem a malícia alheia...

Serviços extra a outras amadas fazem-me mais profundas as feridas...

Deliciosa Vénus, enviei-te dos ornamentos da púbere côr púrpera: são deveras preciosos: é a vossa Sappho que te oferece estes agradáveis presentes...

Não a tenho em consideração até a voltar a desejar...

A vossa disponibilidade devolveu-me a integridade...

Não me ocupam somente coisas meticulosas...

Sim é um mal morrer, porque se não fosse desgraça, os deuses teriam morrido há já muito tempo...

Na cólera, nada convem melhor que o silêncio: quando se acalmam os seus transportes é necessário ainda retractar a língua e não nos entregarmos discursos inúteis e empolgados...

Os pais desta jovem beleza guardada com tanto cuidado pretendiam que eu lhe dava morte fazendo discursos sobre o himen...

Monday, July 02, 2007

HETEROPSICOGRAFIA PREFACIAL


Estas poetisas são umas fingidoras: heteropsicografam-se e agrafam-se nos fingimentos incompletos com que dividem e partilham alegrias e dores que são alheiamente suas no como se vão completando – não sei até que ponto deveras sentimos algo, ou se só esbracejamos sentimentos que vieram ter connosco porque nos deu atrevimento para poetar nos dias em que musas reciprocantes nos deram excitações assim para isto.

Mas se no que minguadamente ou abundantemente escrevinhamos é o quanto nos lêmos, com alguma justificada perplexidade, quer no que parece ser legível, quer nas desfloradas entrelinhas, também o é quanto nos outros nos lemos, ou eles, através do nós, fantasmáticamente nos lêem – e esse é um equívoco, já que a leitura é feroz reconhecimento de uma coisa que em potência fervilha no que habituadamente designamos por alma, mas também é o reconhecimento de um irreconhecivel que parece estar no ar no quanto mundanamente é radical dissimulação. São os pudores das dores e o Amor como negação que temos por mais assegurado. E assim é, o mundo treme debaixo dos firmamentos.

Bem nos podemos entreter com amostras sentimentalonas de razão quanto a tão irrazoável coisa! O que nos leva a ser adverbiais de modo, tão enroladas no querer dizer coisas atrapalhantes, tão directas no acessório, tão perdulárias por excesso de ornamento! – nada parece saír com certidão nas multiplas tentativas a que aqui nos atiramos. Falta-nos a secura dos clássicos e o horror moderno à adjectivação. Também a natura diverge logo na origem, e assim a imitamos na divergência de si mesma, a cada enunciado se escaldando.

Este livro é programáticamente um assenhoramento dos sonetos do Shakespeare, que aqui é traído, ignorado e mal-tratado e outras coisas impróprias. São estes versos postos em boca de mulher, o que não é de estranhar, pois não falta travestismo aos muitos aquis e acolás que se implicam nas feituras e exibições de seus labores. Trata-se de uma apropriação muito cega, e juramos a pés juntas que não sabemos se sobrou sequer um (des)troço que seja fiel a um texto que nunca é original – fidelidades a sentidos estanques são devoção de caniche a megera.

Aquilo a que miserávelmente chamamos literatura pede-nos de joelhos paixões assolapadas que a levem festivamente aos nossos corpos. E nós respondemos particularizando a linguagem, no que é particularizável, tornando ainda mais pessoais os pronomes – o tradutor é um intermediário singularizador, como a mãe que prepara a papa a seu modo. Somos, nesta entrega, umas misticas tão materialistas que só podemos acusar a linguagem de estar a fugir ao corpo de onde nunca poderá escapar senão no grande escapanço da morte.

E assim todolos autores se fazem nossas – amadas mais do que amigas – perdoem-nos os exacerbamentos metafóricos e a vontade, tão grega, de andar a desdizer mal dá azo a isso – é uma inquietude canibal, na qual pomos, sorrateiramente, o máximo dos máximos de delicadeza.